"Tenho ideia que anda uma dor por aí, mas não estou certa de me pertencer"
"A dor que não estou certo de pertencer abranda, e depois volta,digo-lhe
-Olá dor...
e não lhe dou confiança. Não se deve dar confiança nem a nós,há que nos pôr em ordem. Põe-te em ordem António,tu que durante a vida inteira detestaste obedecer. Aliás não te podes queixar, passaste o tempo a fazer o que querias. Agora, sei lá porquê, veio-me à ideia o meu irmão Pedro, o silêncio dele. Gosto de silêncio, de escutar palavras não ditas. Também gosto de pessoas que falam porque me permitem ir embora continuando ali. Elas falam, digo que sim com a cabeça e não estou. Estou onde? Na varanda da Beira a olhar a serra, por exemplo. Ou em parte nenhuma, num esconso interior, sentado no chão, de joelhos na boca, escutando o que não há. Desde que me lembro escuto o que não há, deixo que as coisas se inventem cá dentro, a minha cabeça é uma praia que a água invade e esquece."
"-Sente dores,maezinha?
e no caso de se interessarem por mim o que responderia? Talvez, lá no fundo, mas disfarço, garanto. É que existem coisas que não sararam na alma, não hão-de sarar nunca: as árvores de um cemitério de província a tremerem, algumas mortes, a minha violência tantas vezes injusta, patetices, indelicadezas, faltas de atenção com quem o não merecia. Espero ter melhorado, acho que melhorei mas continuo sem me perdoar o egoísmo necessário à escrita que me obrigou a cortar tantos pescoços que se interpunham entre eu e ela. No entanto, aprecio o António: comove-me a sua feroz guerra civil interior, a vulnerabilidade escondida, a compaixão que não mostra. O imenso orgulho que tem nos seus poucos amigos, a admiração por eles, o respeito."
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